terça-feira, 11 de julho de 2017

CANTAR DE GALO


   Isto começa assim: na escola primária aproximas-te do gajo mais popular da turma, na esperança de que, sendo reconhecida e aceite a tua amizade, muitas portas se abrirão. O gajo mais popular é sempre filho de pais ricos, tem casa com piscina. E tu queres fazer parte do grupo que vai à piscina. Mais tarde, vez que o gajo mais popular da escola foi convidado para fazer parte da lista que concorre à Associação de Estudantes. Com o dinheiro dele, os cromos que sonham com carreira nas juventudes partidárias conseguirão autocolantes e cartazes apelativos, exibem um rosto forte nas listas, sentem-se eles próprios mais populares. Tu ficas de fora, mas olhas para tudo com aquela inveja ingénua, mas incipiente, que começa a corroer a moral pela adolescência. Metes então uma cunha para integrares a lista, consegues entrar na lista, sentes pela primeira vez a vantagem da cunha e a alegria que te proporciona. Depois será um ver se te avias. 
   Ao longo da vida, descobrirás professores com facilidades junto de editores, médicos de família deveras amigos de comerciais de propaganda médica, gajas boas de braço dado com porteiros horrorosos. O mundo à tua volta começará a formar-se com rosto de mundo e descobrirás que sempre assim foi, já Camões se lamentava. A bondade, a ética, a moral, esse palavrão que é a deontologia, nunca trarão felicidade a ninguém, só dores de cabeça, e jamais te facilitarão a vida, só gerarão dificuldades. No dia em que fores a um restaurante, pedires a conta e te chegar pela boca do empregado o sussurro “a conta está paga, aquele senhor pagou-a”, olharás para o bom samaritano que te acena com a mesma satisfação com que deixarás o ego enlevar-se. Afinal és um tipo socialmente relevante, até te pagam almoços. Jamais te ocorrerá que o almoço foi pago com segundas e, por vezes, terceiras intenções. Não há almoços grátis, há permutas que levam o seu tempo a serem saldadas. Mas nada disso tem interesse, o que importa é o momento. 
   Na tua cabeça deixará de ser imoral oferecerem-te um bilhete para a Ópera na esperança que depois ofereças tu uma boa crónica, o teu sentido crítico será amansado como se amansam as bestas e nada te demoverá de seres um homem socialmente íntegro, isto é, integrado, ou seja, como os outros, a fazer o que os outros fazem, seja lá isso o que for, porque se o fazem é porque não deve estar mal. E se os outros fazem, por que não poderás tu fazer? Afinal, que relevância terá aceitares uns vouchers e umas t-shirts, uma viagem para ver a bola, quando o apito é de ferro? Mas será? Na dúvida, sobrará sempre suspeita. E a suspeita é uma realidade tramada, pois reside no crepúsculo como uma incerteza, é e não é, foi e não foi, está mas não está, dúbia, ambivalente, ambígua, a suspeita cola-se ao rosto como manchas de velhice à pele. A não ser que consigas conquistar um lugar no pódio dos inimputáveis, aqueles cujo poder de influenciar é tanto quanto o de decidir. Não são lobistas, como agora se diz, nem se reduzem à insignificância da vetusta cunha, são o ponto mais alto de uma hierarquia onde raramente chega a mão da justiça. 
   Há quem passe ao lado de tudo como se não vivesse neste mundo, como se dentro do crânio não trouxesse um cérebro, como se no lugar dos nervos tivesse ferro, há, não duvidemos, tipos para quem a moral se confunde com os bons costumes. E os bons costumes, como sabemos, pouco têm que ver com o bem, são força de hábito, são a mais velha justificação para todo o tipo de avarezas, ganâncias, vícios de consciência que não incomodam que a não tem. A única certeza que podemos ter acerca disto é que o mundo está cheio de pequenos trafulhas, oportunistas para quem pedir um emprego para o filho a troco de benesses é o mesmo que acender uma velinha pela saúde dos moribundos. Ó senhor doutor, não faria mal algum se... Este recente episódio das viagens para ver a bola é só mais um do vastíssimo leque de episódios onde a trafulhice rasteira ganha sentido de Estado, num país onde se contam pelos dedos da mão aqueles que não teriam agido como agiram os secretários exonerados. Ainda que, como já seria de esperar, andem para aí todos a cantar de galo como se fossem exemplo a que se olhe:


2 comentários:

Carlos Ramos disse...

Tens razão, e o epiteto com que é designado esse sr. que já foi infelizmente ministro é bem arranjado. A força do 8mau) hábito é neste país a grande lei. Inventam-se termos como a famosa "cunha" que mais não é que fétida corrupção no aparelho do estado. O problema é que é socialmente aceite, sem censura de espécie alguma. Confronto-me com situações dessas demasiadas vezes no dia-dia, perco essas lutas quase todas, e vejo que o problema não tem diminuído ao longo destes anos. A luta simples por alguma dignidade, por alguma saúde e limpeza, é algo que necessitamos fazer. É um exercício de cidadania necessário onde a maioria dos cidadãos encolhe os ombros, assobia para o lado desde que haja uns caracóis e uma bjecas frescas "tásse bem", a porra é que se está. Estou também curioso para ver a acusação que o MP irá desencantar, palpita-me que será uma coisa do tipo; "á lá Sócrates"

hmbf disse...

A ver vamos. Entretanto, a SIC vai abrindo jornais da tarde e da noite com as mesmas peças há 3 dias seguidos. As mesmas imagens, o mesmo discurso, numa repetição que não pode deixar de gerar desconfiança. O rosto de desdém do Miguel Sousa Tavares no jornal da noite ao chamar "peça" a uma coisa que tinha acabado de ser exibida diz tudo. A operação desgaste está em marcha. De fora, até dá um certo gozo observar a miséria moral disto tudo. Mas depois um tipo acha-se dentro, acaba sempre por ser atingido, e o gozo transforma-se em asco.