sábado, 17 de fevereiro de 2018

A ESPREITAR A ORIGEM DO MUNDO

Halil Şerif Pasha (n. 1831 – m. 1879), Khalil Bey para os amigos, foi um diplomata turco nascido no Cairo, filho de militar emigrado no Egipto com poder económico suficiente para proporcionar aos filhos a melhor das educações. Iniciou a carreira diplomática em 1856, representando papel de relevo na Guerra da Crimeia que opôs o Império Russo a uma coligação do Império Otomano com a França, a Grã-Bretanha e o Reino da Sardenha. Embaixador em Atenas e São Petersburgo, onde começou a coleccionar arte, retirou-se para Paris em 1860. Na cidade de todos os vícios foi apresentado aos mais importantes artistas da época, dedicou-se ao jogo e reforçou a sua actividade de coleccionador de arte. Adquiriu várias obras de Delacroix, encomendou outras tantas a Courbet, Ingres, Rousseau, Daubigny… Antes de partir para Viena, em 1868, desfez-se de grande parte da sua colecção, mudando-se posteriormente para Constantinopla. Os últimos dias são incertos. Certo é que na colecção de Khalil Bey constavam algumas das mais escandalosas obras do seu tempo. Entre elas: Le Bain Turc (1862), de Jean-Auguste-Dominique Ingres (1780-1867).



50 anos tiveram de passar sobre a sua realização para que esta obra pudesse ser património nacional. O formato circular do quadro, reforçando a sinuosidade das figuras femininas, remete para o buraco de uma fechadura através da qual podemos espreitar diversos nus que Ingres pintou ao longo da carreira e que para aqui recuperou servindo uma encomenda do Príncipe Napoleão. O voyeurismo é uma das características mais evidentes da obra. A voluptuosidade destas mulheres, numa postura que sugere um bacanal lésbico — note-se como no lado direito da composição uma delas acaricia os seios da outra —, gerou escândalo quando a mulher do príncipe recusou peremptoriamente adquirir tal indecência. O Banho Turco regressou às mãos de Ingres, então reputadíssimo artista na casa dos 80. Khalil Bey adquiriu o quadro posteriormente, juntando-o a outras obras que compunham a sua vasta e célebre colecção de arte erótica.



Outro quadro dessa colecção, mais afamado do que a obra de Ingres, era A Origem do Mundo (1866). Ninguém sabe ao certo como surgiu tal nome. Anos a fio afastado do olhar do público, o quadro teve uma existência clandestina que conheceu apenas as mãos do autor e do homem que a encomendou: o turco Khalil Bey. Poucos tiveram acesso à pintura, até depois de Bey se desfazer da colecção. Os nazis queriam destruir A Origem do Mundo, os soviéticos acharam por bem conservá-la. Acabou por ir parar às mãos do psicanalista Jacques Lacan. Mesmo Lacan manteve o quadro escondido durante anos. Hoje, a vulva pintada por Courbet, que há não muito provocou escândalo lá para as bandas de Braga, pode ser devidamente apreciada no Museu d’Orsay. Há quem diga que se trata apenas do pormenor de uma obra maior à qual cortaram a cabeça, não sendo de afiançar que com cabeça pudesse o corpo desta mulher causar menos escândalo. Amigo de Proudhon, simpatizante do socialismo anarquista, Courbet é hoje considerado pelos historiadores o principal representante do realismo democrático. Não admira a posição dos russos perante tão insuspeito representante do realismo socialista.




O diplomata turco que coleccionava estas pérolas aparece poucas vezes citado nos livros de arte. Justiça lhe seja feita.

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